Neste dia Internacional do Rock, se faz necessário reproduzir uma história que poucos fluminenses, cariocas e amantes do rock conhecem: O Dia da Criação. Ocorrido em plena Ditadura Militar, foi o primeiro festival de rock estilo Woodstock realizado no país. Abro o espaço da coluna para reproduzir texto do mestre Rogerio Torres e do jornalista Josué Cardoso, divulgado em matéria do produtor cultural e escritor caxiense, Heraldo HB, para o blog da Lurdinha.
Quando dizemos que Caxias é um lugar surpreendente e tem coisas que aconteceram aqui que beiram o inacreditável, tem gente que acha que é um bairrismo bobo, mas não é nada disso. Pelo menos eu não sou um cara chegado a bairrismo de qualquer tipo e sei bem a complicação, pra não dizer a merda que é morar nessa cidade louca e cruel. Mas é verdade: na história de Duque de Caxias tem muitas coisas que de fato embasbacam. Uma delas por exemplo é essa levantada pela dupla fundamental Josué Cardoso e Rogério Torres.
Trata-se da primeira experiência de um festival no país nos moldes do Woodstock, ainda no auge da ditadura militar, 1972, em pleno governo sanguinolento do Emílio Garrastazu.
O Dia da Criação está fazendo 48 anos esse ano e esse artigo (publicado originalmente na nossa querida revista Pilares da História) tem disparado algumas frentes empolgadas em reunir os poucos registros que restaram desse improvável evento. No final ainda tem um texto do falecido produtor Ezequiel Neves, que sabia das coisas de verdade, escrito sobre o evento. “Vocês vão achar que eu estou exagerando, mas podem crer: se aquele som não tivesse parado, eu acho que até hoje ainda estaríamos vivendo o “Dia da Criação””.
Para ver como Caxias sempre teve uma força gigante no rock in roll, mesmo que parte considerável do público viva falando mal e profetizando o fim da cena na região.
Com vocês, o Dia da Criação:
Dia da Criação: Em plena ditadura militar, milhares de jovens fazem de Duque de Caxias um grande palco da liberdade
Sábado, 14 de outubro de 1972. Milhares de pessoas reúnem-se no Estádio Municipal, conhecido como Maracanãzinho de Caxias, em um grande concerto de rock ao ar livre. O Dia da Criação, além de fluminenses e cariocas, abrigou pessoas vindas de vários estados e até de países vizinhos. Artistas como Fagner, Rui Mauriti Trio, O Terço, Karma e Sá, Rodrix & Guarabyra passaram pelo palco, onde um emaranhado de fios se misturava a incontáveis caixas de som, amplificadores, microfones, luzes, guitarras, baixos, flautas, violões e sintetizadores. A cidade entrava, para sempre, na história por ter realizado o primeiro festival ao ar livre do país voltado ao público jovem.
Realizar um evento como este no município – e em qualquer outro ponto do território nacional – era algo inimaginável na época. Muito menos em um espaço público administrado pela Prefeitura. O país ainda vivia sob uma ditadura militar e a cidade, por sua vez, era conduzida por um general , o primeiro militar do Exército nomeado interventor para “administrar” a cidade, que passou a ser considerada “área de segurança nacional” a partir de 1968.
– Era prefeito nomeado na época o general Carlos Marciano de Medeiros, sendo diretora do Departamento de Educação e Cultura da Prefeitura, a professora Hilda do Carmo Siqueira, irmã do Dr. Moacyr do Carmo, então o último prefeito eleito pelo voto popular. Ela foi uma das poucas exceções naquele desastrado governo, administrando o DEC com dedicação e competência, a qual a se subordinava a Divisão de Recreação e Cultura da municipalidade”, lembrou o professor e historiador Stélio Lacerda. E foi justamente uma parceria com esse setor da Prefeitura que possibilitou a realização do evento.
O País estava plenamente submetido ao Ato Institucional n° 5, assinado por Artur da Costa e Silva no final de 1968 e que vigorou por 10 anos. Entre outros atos de força, o AI-5 permitiu o fechamento do Congresso Nacional por quase um ano. Era certamente um dos momentos mais difíceis da vida nacional, quando até mesmo conversas em grupo, em recinto fechado ou não, eram terminantemente proibidas.
Os jovens brasileiros, mesmo que um pouco tardio, também faziam parte do movimento de contracultura que havia se alastrado pela Europa e Estados Unidos a partir da guerra do Vietnã, iniciada em 1959 e que durou até 1975, considerado o mais longo conflito militar ocorrido depois da II Guerra Mundial. Esse movimento fez surgir o “flower power”, que originou vários festivais de rock, e a “era de aquarius”. A juventude era chamada de “geração bendita”, curtindo o “desbunde”, a paz e o amor, os cabelos longos e as roupas coloridas. Assim como ocorria lá fora, nossos jovens também eram contra as guerras e a tecnocracia e buscavam um modo de vida alternativo, longe dos conflitos.
CONTRACULTURA
A peça “Hair”, um dos maiores símbolos daquela década, estreou em 1968 e depois seguiu para a Broadway, onde foi encenada quase duas mil vezes. De seu elenco, Beverly D’Angelo, única a não aparecer nua em cena, ganharia consagração em Hollywood. O álbum com as canções da peça foi agraciado com o Grammy de 1969. Seguiram-se outras montagens em Los Angeles, Londres e Sydney. No México, depois da primeira apresentação, foi proibida pelo governo e os atores, ameaçados de prisão, tiveram que deixar apressadamente o país.
Ela chegou ao Brasil quase um ano após a decretação do famigerado AI-5, estreando em São Paulo por iniciativa de Ademar Guerra. Além da descrença dos empresários, ele e o produtor Altair Lima tiveram que vencer também a censura. Apesar das restrições, Ademar conseguiu dobrar os censores, dando um tratamento requintado à única cena de nudez autorizada, que caiu no gosto do público e da crítica e é lembrada até hoje como um dos grandes momentos do teatro brasileiro. A peça marcou a estréia de vários jovens atores e atrizes, que depois se tornaram famosos por suas atuações no teatro, cinema e televisão. O elenco inicial tinha, entre outros, Aracy Balabanian, Armando Bogus, Bibi Vogel e Sônia Braga, a grande estrela da peça. Entre os que se encantaram com ela, estava Caetano Veloso, que compôs “Tigresa” em sua homenagem. “Hair” ficou em cartaz até 1972, contando com outros profissionais como Antonio Fagundes, Buza Ferraz, Denis Carvalho, Ney Latorraca, Nuno Leal Maia e Wolf Maia.
O rock and roll, que influenciara gerações em todo o mundo desde o final da década de 50, era mais uma vez o canal para a juventude extravasar. Ele passava por mais uma mutação depois da dissolução dos Beatles, em 1970. O mesmo acontecia com a música popular brasileira que, mesmo sob a ditadura, havia experimentado inovações com o romantismo da jovem guarda e a psicodelia da tropicália. O AI-5 reinava com todas suas armas. Quem fugia das regras podia ser preso, morto ou exilado. A repressão era violenta e não havia filme, livro, jornal, revista, disco ou show que não sofresse mutilação ou proibição. Virada a década, o espírito “underground” se fortalece como mais uma vertente do rock, na busca de preencher a sensação de abandono que o país vivia sob a esteira das leis de exceção.
Em 1972 foram lançados importantes discos na MPB, como “Acabou Chorare” (Os Novos Baianos), “Clube da Esquina” (Milton Nascimento e Lô Borges), “Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets (Os Mutantes), “Amanhecer Total” (O Terço), “Passado, Presente e Futuro (Sá, Rodrix & Guarabyra), “Quadrafônico” (Alceu Valença e Geraldo Azevedo), “Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida” (Rita Lee), “Sonhos e Memórias 1941-1972” (Erasmo Carlos), “Transa” (Caetano Veloso), “Expresso 2222” (Gilberto Gil) e “Vento Sul (Marcos Valle), além do anual de Roberto Carlos, que já chegava às lojas com vendas antecipadas de centenas de milhares de exemplares.
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PIONEIRISMO
O pesquisador Álvaro Faria (http://arquivoculturamauff.blogspot.com/2007/11/o-rock-brasileiro-dos-anos-70-alvaro.html) assinalou na monografia “O Rock Brasileiro dos Anos 70”: “Um sonho perseguido com afinco pela nossa juventude roqueira era a realização do “nosso” Woodstock, um grande festival de rock ao ar livre, nos moldes do lendário evento acontecido nos EUA, em 1968. Muitas tentativas se fizeram, mas a repressão e a desconfiança do governo somada à precariedade do nosso show business da época só resultaram em, no máximo, sucessos parciais”.
E cita o histórico evento realizado em Duque de Caxias: “Uma das primeiras tentativas neste sentido foi o festival Dia da Criação, que aconteceu em outubro de 1972 no Estádio Municipal de Duque de Caxias, RJ. O evento, organizado por Marinaldo Guimarães, empresário do grupo Módulo 1000 e um dos principais “agitadores” do rock na época, reuniu cerca de duas mil pessoas, e teve como atrações Sá, Rodrix & Guarabyra, Milton Nascimento & Som Imaginário, O Terço, Os Brazões, Karma, Sociedade Anônima, Módulo 1000, O Grão, Diana & Stul, Liverpool, Jards Macalé, A Gosma e Faia. Muitos destes artistas não chegaram a deixar nenhum registro gravado”. (NR.: Vale acrescentar que Milton Nascimento e o Som Imaginário, mesmo anunciados, não se apresentaram).
A partir daí, outros concertos de rock foram realizados em alguns pontos do Brasil, destacando-se o Hollywood Rock (Estádio do Botafogo, RJ), que durou quatro sábados; o “Festival de Águas Claras” (Iacanga, São Paulo) e o “Banana Progressiva” (teatro da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo), todos em 1975. Foi a partir deles que “a repressão começou a tratar com mais dureza os eventos de rock, principalmente ao ar livre”, observa o pesquisador. Mesmo assim, ainda teve destaque o “Som, Sol e Surf”, em Saquarema (1976), assim como o “Hollywood Rock” citado, produzido pelo jornalista Nelson Motta. O “Hollywood Rock” ganharia outras versões com patrocínio de uma tabacaria, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, nos anos de 1988, 1990, 1992, 1993, 1995 e 1996, também com atrações internacionais. Antes, em 1985, no Rio de Janeiro, o mega “Rock in Rio”, do empresário Roberto Medina, projetou-se como um evento de repercussão mundial e ganharia outras seis edições (duas no Brasil, três em Portugal e uma na Espanha). Mas isso já é uma outra história.
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OUSADIA
Apesar de sua importância histórica, o “Dia da Criação” não teve grande repercussão na imprensa e a divulgação que merecia pelo seu pioneirismo no Brasil. A propaganda “boca em boca” parece ter sido a principal para o sucesso do acontecimento, como lembram algumas pessoas que lá estiveram e com as quais conversamos. Além de uma chamada no Caderno B do “Jornal do Brasil” no dia do evento e um “flash” na TV Globo, contou apenas com a cobertura da edição brasileira da “Revista Rolling Stone”.
O anúncio oficial do evento foi feito em sua edição n° 25 (outubro), em matéria que ocupou toda a página 3: ”O Grupo de Trabalhos Avulsos pretende que o Dia da Criação seja uma festa livre onde todas as pessoas possam participar com sua música, sua arte e as boas vibrações. Um concerto pop em que se mistura, pela primeira vez, educação e rock.”, assinalava o texto, acrescentando que parte da renda seria destinada à caixa escolar do Município, sendo os ingressos vendidos antecipadamente nas salas de aula da cidade e em dois postos: um no Edifício Profissional, no bairro 25 de Agosto, e outro em Ipanema, zona sul do Rio.
Além de nominar as presenças “confirmadas” acima mencionadas, informava que fariam parte da estrutura no dia do evento, um posto médico e policiamento no interior do estádio, onde foi montado o palco e recebido o público. Ao redor do gramado, foram montadas tendas de lona para a produção, camarins de músicos e venda e troca de roupas e artes plásticas, além de refrigerantes e sanduíches. O anúncio (em princípio material jornalístico e não publicitário), divulgou até um roteiro de como as pessoas de fora poderiam chegar ao local do evento, cuja entrada custaria apenas Cr$ 5 (Cinco cruzeiros).
Trinta e seis anos depois, foi muito trabalhoso levantar as circunstâncias de como o “Dia da Criação” foi concebido e realizado. São pouquíssimos os registros sobre o evento e as pessoas envolvidas em sua organização já faleceram, como Marinaldo Guimarães, Leonis (O Leão de Caxias) e Ademir Lemos, além de Carlos Garcez, do qual não se tem notícias.
“As previsões iniciais de 12 horas consecutivas de som acabaram virando quase 20 horas de festa total”, assinalou o jornalista Ezequiel Neves na coluna “Toque”, publicada em 7 de novembro de 1972 na “Rolling Stone”, único órgão a cobrir o evento.
DE FORA
Apesar de não constar na lista dos participantes, o grupo Massa Experiência (Aldemir Duval – baixo, composição e voz, Paulo Romário – piano e vocal, Marçal – guitarra, Gigante – percussão e vocal e Roberto – bateria), surgido em Duque de Caxias em meados de 1971, tinha sua participação como certa, convidado que foi, representando a Baixada Fluminense. Porém, não subiu no palco. Aldemir Durval, que hoje mora e trabalha como músico na França, explicou, por email, que havia sido acertado que o grupo encerraria o evento, oficialmente aberto pelo O Terço. Porém, isso não aconteceu, segundo ele, por iniciativa da organização do evento, que se perdeu diante do tamanho que se tornou o evento. “Nem por isso perdemos o bom humor e participamos como outras milhares de pessoas participaram. Foi um momento histórico para a música brasileira e nós estávamos lá”, lembrou Duval.
Segundo o jornalista Eldemar de Souza, um dos letristas do grupo, a Massa Experiência foi a primeira banda pop-rock surgida em Duque de Caxias, no bojo do pós-tropicalismo. “Não há notícia de nenhum outro grupo de músicos na Baixada Fluminense, que a tenha precedido em apresentações no circuito musical de sua época, nos teatros da Zona Sul carioca”, afirmou ele no texto “A Massa Experiência e as experiências da Massa”, publicado em seu blog (http://eldemardesouza.blogspot.com).
O local onde foi realizado o “Dia da Criação” é administrado pela Prefeitura até hoje. Ali funcionam a Vila Olímpica da cidade e a Secretaria de Esporte e Lazer. Quem por ali passa, não faz a mínima idéia de que o local serviu como um importante atalho para que surgissem outros grandes eventos de música ao ar livre e, ao mesmo tempo, mostrar ao País que a liberdade se conquista, não vem ao acaso como um presente qualquer.
A cidade só viria a reconquistar sua autonomia em 1985, depois de abrigar mais dois coronéis do Exército e um civil, todos nomeados sem consulta à população. Porém, não se teve notícia de nenhum outro evento como aquele até os dias de hoje.
O “Dia da Criação” é, certamente, um elo perdido na história cultural do Brasil.
Texto de Josué Cardoso e Rogério Torres, publicado originalmente na Revista Pilares da História – Duque de Caxias e Baixada Fluminense – RJ, Edição n° 10, em maio de 2010, editada pelo Instituto Histórico Vereador Thomé Siqueira Barreto-Câmara Municipal de Duque de Caxias e pela Associação dos Amigos do Instituto Histórico-ASAMIH.
Transcrição de reportagem assinada pelo jornalista Ezequiel Neves, na seção “Toque”, da Revista Rolling Stone (edição brasileira) n° 25, em 7 de novembro de 1972, sobre o Dia da Criação, festival de rock realizado em Duque de Caxias. Estão mantidas a grafia e a redação do original
“Acho que seria muito bom lembrar agora o velho ditado: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Isso a respeito das coisas que estão no ar. Estão pintando transações maneiríssimas e a gente tem que acender muita vela prá que tudo caminhe como tem caminhado. Digo isso porque o verão já está chegando e se as coisas continuarem assim, o verão 73 será uma sucessão interminável de festas. A garotada terá, finalmente, sua estação de música e boas vibrações.
Digo isso porque outro dia passei mais de quinze horas num clima de pura festa, campo aberto e graminha verde, ouvindo as pessoas fazerem música, transando com elas, vivendo de um modo que eu não vivia há muito tempo. Eu sei, bem no fundo da cuca e do coração, que tudo de bom que passei, foi apenas uma amostra do que está para acontecer em vários pontos desse país. Sei disso porque a garotada está louca prá se encontrar, prá se juntar e comungar, prá curtir um som legal longe de grilos e paranóias.
O “Dia da Criação” foi assim, foi uma festa de purificação onde as vibrações eram as melhores possíveis. Basta dizer que as previsões iniciais de 12 horas consecutivas de som acabaram virando quase 20 horas de festa total. E muitos grupos deixaram de tocar simplesmente porque não havia mais tempo disponível. Quer dizer, se todos fossem tocar a gente teria de ficar uns dois dias reunidos. E isso, por causa das circunstâncias, era completamente impossível.
Muita gente deu um duro danado para que a festa acontecesse. Eu não teria o saco que eles tiveram para fazer aquilo tudo. Marinaldo, Ademir, o GTA e a Prefeitura de Caxias (desculpe se saltei alguém, mas e que escrevo tudo de cabeça e minha cabeça anda muito maluquete) reuniram uma equipe sensacional. Quando cheguei no Estádio Municipal de Duque de Caxias fiquei completamente desbundado. Havia, fora o palco central, uma porção de barracas armadas e as pessoas curtiam aquilo tudo como se estivessem voltando à infância. E de um certo modo estavam mesmo, já que toda espécie de repressão estava completamente longe dali. O teto era o céu aberto, o chão um espaço enorme coberto de grama.
Marinaldo me contou que tudo aquilo estava na beira de fracassar. Dois dias antes, a empresa encarregada da aparelhagem de som fez uma bruta sacanagem não assumindo o compromisso combinado. Eles tiveram de quebrar o galho de outra forma, sem tempo e sem dinheiro, mas sempre com uma vontade louca de não decepcionar a garotada. E a festa aconteceu. Ou melhor, estava acontecendo. E o que pintava de bons conjuntos não era mole!
Cheguei lá às três da tarde e às cinco já estava completamente louco. É sempre assim: bastou alguém pôr o dedo numa guitarra prá eu ficar hecatombicamente maluco. O som bate na minha cuca e eu me sinto a própria semente da consciência cósmica. Fiquei passeando solto, com aquele sonzão me amparando e conduzindo, o Sol na minha cara mandando as mais incríveis fosforescências. Encontrei uma turma maravilhosa de São Paulo (eles chegaram no Rio e foram direto prá Caxias, “porque lá é que estava instalado o pais do som”, me disseram). Sentei na grama e fiquei batendo um papão gênio com três garotas lindas de SP. Elas me deram noticias incríveis, me falaram de Paulinho KIein (oi Paulinho!), me contaram que o som em SP não vai indo nada bem, o que me deixou bastante grilado.
Mas aquele não era hora de grilos, e foi por isso que me levantei e fui ver uma exposição de posters que estava armada bem perto de onde a gente estava. Havia um pôster incrível de Janis Joplin e um outro mais incrível ainda, de Robert Plant. E havia também barracas sensacionais onde a gente podia descansar e conversar enquanto o som explodia lá fora em todas as direções. Acho até que banquei o intrometido entrando sem ser convidado na barraca (orientalíssima e com incensos maravilhosos) do Modulo Mil. Eu estava tão louco que nem podia falar e a turma legalíssima que estava lá dentro me recebeu compreendendo e sentindo isso. Quer dizer, me deixaram logo à vontade.
Acho que nem me despedi deles quando ouvi o som do Ruy Maurity. Saí correndo, abri caminho por uma multidão incrível, me ajeitei bem na frente e lá fiquei pulando ao som de “Em Busca do Ouro”. A noite já tinha chegado, uma lua tímida espiava aquilo tudo, e pelo jeito, gostou tanto que até resolveu crescer. Ficou nítida, prateada, e acabou dançando também – isso eu juro que vi, mas é segredo.
Depois chegou a voz de Fagner, o cearense mais universal desse planeta. Fagner e seu violão castigaram um montão de coisas lindas, mas eu me lembro mais de duas delas, “Cavalo-Ferro” (primeira vez que ouvi essa maravilha na voz dele) e “Quatro Graus”. Eu estava sentado e quando Fagner acabou de cantar me levantei prá não me sentar mais até às 3 horas da manhã. É que o som ficou tão sacudido que eu não parei mais de dançar.
Paulo, Cláudio & Maurício mandaram uma brasa doida, um som maluco com milhões de harmonia inventadas e brotadas da flauta de um deles. Henricão entrou na dança e deu um show fortíssimo. O Liverpool Sound deu uma de blues, enquanto O Grão, O Terço, Faia e o Módulo Mil detonaram seus rocks fazendo o pessoal botar os yá-yás prá fora. O Faia me deixou mais louco ainda com uma letra berrada contando misérias: “Eu vou comer feijão com ketichup, prá vomitar em você”.
Depois teve Lena Rios, Os Brazões, Jorge Mello (muito estranho) e Sá, Rodrix & Guarabyra. Lógico que continuei pulando feito um louco e pulei mais ainda quando eles, os Sás, Rodrix & Guarabyras de my life, lascaram o “Vamos Por Aí”.
Olha, foi lindo pacas! Quando eu sai de lá, Diana & Stull estavam cantando “Ai Que Dor” (que eles acabam de lançar em compacto). Diana estava linda, contou um monte de coisas prá garotada linda que ainda não havia arredado pé apesar do avançado da hora.
Vocês vão achar que eu estou exagerando, mas podem crer: se aquele som não tivesse parado, eu acho que até hoje ainda estaríamos vivendo o “Dia da Criação”. Eu acho que ele, realmente, ainda não acabou. Está apenas começando. Isso eu sinto pelas vibrações purísimas que estão no ar. E o verão vem aí prá gente se reunir e ser criança de novo”.
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Transcrição do anúncio publicado na Revista Rolling Stone n° 24, em outubro de 1972:
“O Dia da Criação é um concerto de música ao ar livre, organizado em moldes profissionais pelo Grupo de Trabalhos Avulsos, composto de estudantes universitários, idealizado por Leonis (O Leão de Caxias) e produzido pelo Carlinhos Garcez e Marinaldo Guimarães.
Todo mundo que transa no mundo pop conhece as dificuldades de se realizar um concerto ao ar livre. O Grupo de Trabalhos Avulsos conseguiu superar todos os obstáculos para uma realização desse tipo numa jogada de bastante profissionalismo, em colaboração com a Divisão da Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal, que está vendendo ingressos nas salas de aula, com antecedência, e posterioridade, dividirá a renda com a Caixa Escolar do Município.
Para quem não saca, isso significa uma projeção muito importante. Um concerto pop em que se mistura, pela primeira vez, educação e rock. Este departamento conseguiu também a organização do concerto no Estádio Municipal, alem da instalação do palco, iluminação, posto médico de urgência e policiamento.
O Dia da Criação está aberto à livre criação de todos o grupos musicais que desejarem participar. (GTA: Praça Roberto Silveira, 15, s/208, Tel. 4056, Caxias, ou Carlos Garcez , Rua Redentor, 11, I Cobertura, Ipanema, tel. 227-1629). Além de músicos, os artistas plásticos, artesãos e outros que desejem apresentar seus trabalhos poderão se apresentar no local.
Os grupos que já confirmaram sua participação são: Sá, Rodrix & Guarabira, Módulo Mil, O Grão, Jorge Mello (vencedor do Festival Universitário), Equipe Mercado, (Diana & Stul), Faia, Lena Rios e Os Brasões, além dos convidados Ruy Mauriti Trio, O Terço, Milton Nascimento & Som Imaginário, Karma e Liverpool Sound.
No local estarão armadas barracas com refrigerantes e sanduíches, e o ingresso custará Cr$ 5,00 (cinco cruzeiros).
O Grupo de Trabalhos Avulsos pretende que o Dia da Criação seja uma festa livre onde todas as pessoas possam participar com sua música, sua arte e as boas vibrações.
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ROTEIRO – Condução para Caxias:
ÔNIBUS DA PRAÇA MAUÁ: Caxias-Mauá, via 25 de agosto (saltar em Caxias, na Praça Humaitá)
TIJUCA: Praça da Bandeira-Caxias
ZONA NORTE: Caxias-Del Castilho, Caxias-Méier, Penha-Caxias, Caxias-Freguesia (Jacarepaguá)
PARA QUEM QUISER CURTIR DE TREM:
Estação da Leopoldina ou Central do Brasil (Estação Francisco de Sá, próximo à Praça da Bandeira)
PARA OS QUE QUISEREM IR DE TÁXI:
Preço médio de ida e volta: Cr$ 30,00; ponto de referência para localização do Estádio Municipal em Caxias: Instituto de Educação Roberto Silveira”